Imagem capa - Projeto Rituais de Transição por Elisabete Bianchi
Projetos

Projeto Rituais de Transição

Memórias da infância – rituais de transição *

Por Elisabete Bianchi**

A maternidade abriu uma janela na minha vida. Quando fui mãe descobri uma nova profissão para amar. Ao apreciar o desenvolvimento de minha filha e sentir no peito a transformação que trouxe em mim, pude mergulhar no mundo da maternidade. O desafio é entregar na minha fotografia o que acredito ser mais importante nesse universo.

As imagens, em especial a fotografia, têm presença marcante na vida contemporânea. A família constrói parte de sua memória – do seu campo simbólico do mundo real e concreto – com álbuns fotográficos. E essas fotografias norteiam nossa imaginação, que pode ser absorvida por nossos sentidos, emoções e experiências.

A Psicóloga e Psicanalista caxiense Gabriella Casalicchio nos conta: “Algumas questões como ‘de onde viemos’, ‘como éramos’, ‘com quem parecíamos’, ‘o que gostávamos’, ‘quais momentos comemoramos’, são sentidos novamente no encontro com esses registros fotográficos, e nos ajudam a construir uma identidade, a partir de informações e fantasias, onde o ‘eu’ vai sendo elaborado e construído”.

Ela reafirma meu pensar de que se pode construir um álbum fotográfico de acompanhamento da infância realmente significativo. Isso é possível ao seguirmos alguma lógica de desenvolvimento do bebê e da criança, ao invés do simples fotografar das pausas no tempo, marcadas pelo calendário.

É evidente que o período da gestação e o universo do recém-nascido são importantes para a memória fotográfica. Após esse momento inicial, outros registros que podem contribuir no álbum do bebê em seu primeiro ano de vida são os marcos de desenvolvimento. Mais especificamente, as transformações que lhe proporcionam mudanças do seu ponto de vista sobre o mundo. O bebê assume diferentes perspectivas com as mudanças em sua postura corporal. Isso geralmente acontece de três em três meses, como sustentar a cabeça quando de bruços, sentar sozinho, engatinhar e erguer-se.

Também quando se trata de fotografar crianças, podemos fugir da constante “datas de aniversários”, que representam uma pequena porção de suas histórias. A coleção fotográfica mais representativa de cada criança tem um calendário muito particular, por haver distintas realidades, influenciadas pela cultura, estilo de vida e modo de educar em cada família. Por esse motivo, o que cito aqui são exemplos de momentos vividos em minha própria família que me pareceram importantes.

A experiência que tive com minha filha me dizia que nós poderíamos ajudar na preparação para as mudanças da vida, para crescer. Após completar um ano, a primeira grande transição em sua vida foi a retirada das fraldas diurnas.

A escolinha fez um trabalho de preparação para essa ocasião que me fez pensar sobre a importância dos rituais em momentos de transição. Nessa preparação, houve o tempo de conversar sobre isso com as crianças, tanto na escola como em casa, engrandecendo com leveza e alegria, o fato de estarem crescendo. Instigadas à essa mudança, as crianças participaram de um momento especial – que identifico como um ritual de transição. Elas tiraram suas próprias fraldas e colocaram no lixo. Depois, desfilaram com suas primeiras calcinhas e cuecas. E a cada etapa desse ritual, muita comemoração.

As crianças recebem essas comemorações com orgulho, principalmente quando vividas intensamente. A ênfase no que há de positivo reforça o desejo de concretizar essas “novas conquistas”. Isso é um ponto importante para que no dia a dia (após o ritual) a criança persista na ideia de efetivamente alcançar aquela conquista. Gabriella também aponta que “essas memórias da infância funcionam como parâmetros, que envolvem os sentidos, sensações e os afetos que são a essência do nosso mundo afetivo e cognitivo. Os rituais que marcam o desenvolvimento da criança são como patrimônio simbólico, capazes de assegurar ao sujeito um ideal positivo de pertencimento, identidade e referência”.

Percebendo a importância desses rituais, fiquei instigada a criá-los em outras situações. Uma delas foi a saída do berço, abrindo lugar para a cama grande. Em tom de comemoração, conversamos sobre a mudança. Ela acompanhou a desmontagem do berço, se despediu dele quando o caminhão foi embora e acompanhou a montagem da cama grande. Foram momentos bem agradáveis, marcados pela alegria e pela participação de toda família. O que eu queria era criar esses momentos que são pequenos marcos em sua memória. Quando surgia a saudade do berço, retomávamos a lembrança da experiência do ritual e ela processava melhor a ideia de que a partir daquele instante um pouco de sua rotina havia mudado para sempre.

Momentos assim, vividos em família, são muito intensos. É difícil mensurar e comparar a dimensão disso no imaginário e afeto da criança e dos pais. Mas, acredito que um memorial de fotografias desses momentos seja um rico tesouro para passar por gerações. Mesmo sendo fotógrafa, não fotografei esses rituais com minha filha. Eu quis ser apenas mãe e estar integralmente ali com ela. Se eu fosse fotografar talvez não aproveitasse tanto a experiência por ter preocupações com a fotografia, mas se pudesse voltar atrás eu possivelmente contrataria o serviço. Contudo, foi o que pensei como mãe naquele instante. Essas questões fotográficas só surgiram recentemente, quando senti a falta de ilustrar essas memórias para minha filha através de meus álbuns de família.

 

“As fotografias reconstroem experiências! São formas de reviver um momento, revisitar nossa história e sentimentos, a partir de registros que nos estruturam internamente dentro de uma linha do tempo. Disponibilizar registros como fotografias às nossas crianças é uma forma saudável de contribuir, que de tempos em tempos, elas possam revisitar e acompanhar seu desenvolvimento, tendo contato com sua história em diferentes momentos, dando sentido a quem são e podem ser.” 

(Gabriella Pombo Casalicchio)


Pensando em tudo isso é que aconselho as famílias a contarem da melhor forma para seus filhos e através da fotografia, seu jeito de viver e expressar o amor. Cada família tem seus próprios rituais, que acabam sendo importantes para que a criança acione as mudanças necessárias na sua vida. Despedida da chupeta (reforço a importância de enfatizar o positivo, mesmo nas despedidas), despedida da mamadeira (na introdução do copo, imagine um festival de sucos, ou então um banho de copos de água, ou copos de leite), despedida do título de filho único (pode-se ler uma historinha a respeito, fazer um desenho para o maninho, arrumar o bercinho e fazer um calendário de brincadeiras suas com os pais), o primeiro dia de aula (preparando a mochila, o trajeto de casa até a escolinha e se despedindo da mãe), a oportunidade de escolher a própria roupa, de ajudar em algum serviço doméstico, de receber o melhor amiguinho em casa, de praticar um hobby... Todas essas situações, sejam elas rituais de transição ou simplesmente um dia de intensa alegria, trazem valor às histórias de vida que construímos na família. Afinal, como dizia o escritor Gabriel Garcia Márquez: “A vida não é a que a gente viveu e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.


Descobrir as letras e escrever o próprio nome são as atuais aventuras da Antônia.



 * Matéria publicada na 1ª edição da Revista Maternité.

**Elisabete Bianchi é Licenciada em Artes Plásticas e Pós-Graduada em Produção de Imagens com Meios Tecnológicos. Atua como fotógrafa desde 2013. Especialista em ensaios gestante, newborn, bebê e criança. 

Contribuição:  Gabriella Pombo Casalicchio / CRP 07/25044 / Psicóloga e Psicanalista / Formação na área de Psicologia Perinatal e Parental.